Ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas ainda é desafio para educadores

15/10/2018

Lei 10.639, que tornou esse ensino obrigatório, está prestes a completar 16 anos em vigor, sem ter sido efetivamente implementada

Foto: Marcos Garcia/Jornal De Fato
Foto: Marcos Garcia/Jornal De Fato

Por Maricelio Almeida/Jornal De Fato

Sancionada no início de 2003, a lei 10.639 tornou obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nos níveis fundamental e médio de escolas públicas e particulares de todo o país. Passados quase 16 anos desde que a legislação entrou em vigor, que avanços efetivos já foram constatados? Para a doutora em Antropologia Eliane Anselmo da Silva, que é também coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (NEAB/UERN) e professora do Departamento de Ciências Sociais e Políticas, a lei representa uma conquista significativa para o movimento negro, mas a sua aplicação ainda deixa muito a desejar.

"Encontramos muitas resistências de secretarias estaduais, municipais, escolas e inclusive educadores. A justificativa é sempre a mesma: que não se tem material didático adequado ou que os professores não têm formação na área. As várias pesquisas que realizamos mostram isso. Mas, não é de todo verdade. Já existe um bom acervo disponível para se trabalhar a história e a cultura africana e afro-brasileira na escola. A formação dos professores é sim um problema, porque a grande maioria realmente não tem. E acredite: alguns afirmam não ter conhecimento da lei. Mas, o problema é que também não buscam conhecer e nem obter essa formação, não têm interesse", pontua a professora.

Segundo Eliane Anselmo, esse desinteresse evidencia uma problemática ainda maior: a resistência à introdução da discussão que a lei apresenta. "E essa resistência não se dá no vazio. Ela está relacionada a um imaginário social peculiar sobre a questão do negro no Brasil, alicerçado no mito da democracia racial. Ou seja, a crença de que a sociedade brasileira é um exemplo da democracia e inclusão racial e cultural faz que a demanda do trato pedagógico e político da questão racial seja vista com desconfiança ou algo sem importância pelos brasileiros de maneira geral", comentou.

A professora continua: "Um exemplo disso é a ideia de que não existe racismo no Brasil. Acredito que um dos caminhos para a superação dessa situação seja uma reflexão profunda sobre a discussão já realizada pelo Movimento Negro e por todos aqueles que acreditam em uma educação antirracista: que a questão racial não se restringe à comunidade negra, e a superação do racismo e da desigualdade racial faz parte da luta pela construção da cidadania e democracia para todos. Em uma sociedade multirracial e pluricultural, como é o caso do Brasil, não podemos mais continuar pensando a cidadania e a democracia sem considerar a diversidade e o tratamento desigual historicamente imposto aos diferentes grupos sociais e étnico-raciais. E nesse sentido, a escola deve fazer a sua parte", opinou.

Antropóloga Eliane Anselmo - Foto: Cedida
Antropóloga Eliane Anselmo - Foto: Cedida

FORMAÇÃO DOS PROFESSORES

A formação de professores é um dos principais desafios na efetiva aplicação da lei 10.639, conforme destacou Eliane Anselmo. Para tentar reverter esse cenário, o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana estabeleceu, no âmbito das instituições de ensino superior (IESs), algumas ações, entre elas a inclusão de conteúdos e disciplinas curriculares relacionados à Educação para as Relações Étnico-raciais nos cursos de graduação e atenção especial aos cursos de licenciatura e formação de professores, garantindo formação adequada sobre História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e os conteúdos propostos na lei 11.645/2008, que inclui também a cultura indígena.

"Várias universidades já começaram a aplicar essa lei, mas a nossa Uern, por exemplo, ainda não. Isso resolveria, a priori, o problema de formação dos professores da educação básica e a aplicação da lei nesse nível de ensino. O fato é que se não estamos formando os professores e os preparando para trabalhar essa lei e sua temática, como podemos cobrar que as escolas o façam? Mas estamos agora, enquanto Neab, começando esse debate de implantação da lei na nossa universidade, para que a disciplina de Relações Étnico-Raciais seja ofertada obrigatoriamente nos nossos cursos de licenciatura para além de todo o trabalho que já desenvolvemos na Uern sobre a temática étnico-racial. Isso, sim, vai ser um passo importante para nós", revelou Eliane Anselmo.

Em nota enviada ao JORNAL DE FATO, a Secretaria de Estado da Educação e Cultura (SEEC) também apontou como principal dificuldade na implementação da lei 10.639 a formação de professores, problemática que será solucionada, segundo a Secretaria, a partir de 2019, com o novo currículo escolar da rede estadual. "A referida lei está contemplada na construção do currículo do Rio Grande do Norte. Ela é discutida em diversos aspectos do documento, tanto no texto introdutório como nas habilidades do componente História dos anos iniciais e anos finais. Os livros didáticos já contemplam também a referida lei. Os professores colocam em prática nas discussões, trabalhos e atividades ligados as diretrizes da legislação. A Secretaria solidificará esse processo quando for implementado o currículo no final deste ano", disse a SEEC.

Também por meio de nota encaminhada à reportagem, o Ministério da Educação destacou que, para a formação continuada de profissionais do Magistério da Educação Básica, tem fomentado a oferta de cursos desenvolvidos por universidades públicas, em nível de extensão, aperfeiçoamento e especialização, nas modalidades presencial e a distância, em diversas áreas, entre as quais a temática da Educação para as Relações Étnico-Raciais.

Foto: Marcos Garcia/Jornal De Fato
Foto: Marcos Garcia/Jornal De Fato

CULTURA AFRO-BRASILEIRA

Como pode ser definida a cultura afro-brasileira? A doutora em antropologia Eliane Anselmo traz a resposta: "Ela surge do intercâmbio cultural, ou seja, das trocas culturais e dos contatos entre povos de origem muito diversa vindos para o Brasil do continente africano no processo da diáspora. Essas trocas culturais ocorridas por vários séculos durante o período colonial brasileiro contribuíram para a formação de uma cultura híbrida e de uma riqueza cultural peculiar no país. É visível a influência africana em todos os aspectos da sociedade brasileira. Muito da cultura brasileira se deve aos elementos africanos: a culinária, a música, a dança, o vocabulário, a religiosidade, enfim. Temos assim a construção de uma identidade cultural brasileira, de uma cultura afro-brasileira. Mas é preciso ressaltar que essa formação cultural não se deu de forma linear, uniforme e muito menos harmônica. Foram muitos conflitos, adaptações e arranjos ao longo dos séculos. Temos que refletir sobre isso, valorizar essa cultura e reconhecer sua importância para nossa sociedade, e a lei 10.639 tem esse objetivo. Porque de modo geral, nossa educação é marcada por uma grande desinformação sobre a nossa herança africana e sobre as realizações do negro brasileiro."

"Discussão é realidade em nossas escolas", afirma secretária municipal de Educação

Na Rede Municipal de Ensino de Mossoró, as discussões sobre a História e Cultura Afro-Brasileira vêm acontecendo de forma transversal, não havendo uma disciplina específica que trabalhe o tema, como explica a Secretaria Municipal de Educação. De acordo com a pasta, a determinação prevista na lei 10.639 é contemplada em todas as etapas de ensino oferecidas, desde a educação infantil, passando pelo ensino fundamental dos anos iniciais e finais, chegando até a educação de jovens e adultos.

O Município reforça que todo o conteúdo trabalhado nas salas de aula faz parte das ações pedagógicas contidas no Projeto Político-Pedagógico (PPP). "Cada escola, com sua equipe pedagógica, realiza o planejamento pedagógico anual já contemplando os conteúdos que evidenciam a importância da contribuição do povo afro-brasileiro na história e cultura nacionais. A Secretaria Municipal de Educação tem todo o cuidado de fazer a escolha de livros que contemplem o tema para que ele seja trabalhado com os alunos", pontuou a Secretaria.

Magali Delfino, secretária de Educação de Mossoró. Foto: Secom/PMM
Magali Delfino, secretária de Educação de Mossoró. Foto: Secom/PMM

"A discussão da contribuição do povo afro-brasileiro na nossa história e cultura é uma realidade nas nossas escolas. Todo o conteúdo é contemplado nos planejamentos pedagógicos e o assunto é trabalhado do ponto de vista histórico, mas também na formação cidadã, trabalhando o combate ao preconceito. Uma outra iniciativa que evidencia a importância do conteúdo para as nossas escolas é a aquisição de livros didáticos e paradidáticos de conteúdo afro-brasileiro realizado através do cheque-livro concedido pela Prefeitura. O cheque-livro tem possibilitado que as escolas façam aquisições que enriquecem os acervos de suas bibliotecas", conclui a secretária municipal de Educação, Magali Delfino.